O CORTIÇO
- jornalpoiesis
- 21 de jun. de 2021
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Comentários e resumo por Geraldo Chacon
Azevedo, Aluísio − O cortiço, SP, 1981, Abril Cultural. (Obra utilizada para citação)
APRESENTAÇÃO
Nesta obra, Aluísio apurou as suas melhores características estilísticas individuais: força expressiva na reprodução da realidade cotidiana; capacidade de selecionar o pormenor pitoresco e típico; diálogos rápidos, econômicos, precisos; descrição precisa e sugestiva; engajamento de quem está atento aos graves problemas de seu tempo, como a miséria e o trabalho escravo. Para finalizar, é admirável a sua capacidade de movimentar as massas, de fixar o coletivo e sua visão panorâmica.
Se no seu primeiro romance naturalista, O mulato, Aluísio ainda não se livrara de alguns resquícios da estética romântica, em O cortiço, ele consegue manter extrema objetividade, revelando o atrito do meio, o conflito de temperamentos e o agitar dos instintos estimulados pelo sol abrasador dos trópicos, conforme a crença cientificista e determinista da segunda metade do século XIX.
ESTILO DE ÉPOCA E ESTILO INDIVIDUAL
Entre as mais típicas características do Realismo-Naturalismo devemos mencionar a não idealização das personagens. A partir dessa estética, podemos encontrar predominantemente personagens vulgares, com imperfeições como as que estamos acostumados a perceber em nós e nas pessoas que nos rodeiam.
O materialismo e o anticlericalismo são comuns na maioria dos escritores da linha realista e da tendência naturalista.
A temática é sempre contemporânea, evitando-se o medievalismo, o passado histórico. O Naturalismo continua, ao contrário do realismo machadiano, a valorizar as peripécias, a ação exterior. O racionalismo e a visão crítica são posturas fundamentais para todo artista que pretenda ser realista ou naturalista. A obra de arte deve ser uma arma de combate aos problemas sociais, às injustiças. O artista deve ser engajado. Aluísio em O cortiço denuncia o problema da exploração através do aluguel, devido a escassez de moradias no Rio de Janeiro. Em O mulato, vale-se da pena para denunciar o preconceito racial, a visão tacanha dos provincianos e a lubricidade dos padres, revelando influência de Eça de Queirós.
Comenta João Pacheco que Aluísio deixa de lado a meiguice romântica que a tudo atribui sentimentalidade e brandura para assumir uma dramaticidade bruta, descobrindo a face rude dos homens, arrastados pelas paixões vis e dominados pela força da sensualidade.[1]
Tendo escrito muitas vezes para publicar inicialmente em “folhetins”, o romancista maranhense fez concessões ao seu heterogêneo público. Além disso, muitas vezes escrevia premido pela pressa, sendo levado à improvisação, o que explica a desigualdade de sua obra e um certo desequilíbrio de posição, mostrando-se ora romântico, ora naturalista.
O Naturalismo, assim como o Realismo, busca a objetividade e o racionalismo, mas acrescenta-lhe o cientificismo e o determinismo de H. Taine, que coloca o homem e suas ações como o resultado combinado de três fatores: a raça ou hereditariedade, o meio e o momento histórico.
Na escolha de personagens, não só emprega figuras vulgares, mas tem preferência por aquelas oriundas das mais baixas camadas sociais, animalizadas: E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco. (O cortiço, pp.26/7).
É comum, no Naturalismo, o zoomorfismo, isto é, o nivelamento ou a comparação do homem com animal. Ao contrário da estética romântica que privilegia o amor fiel e indestrutível, o Realismo prefere a temática do adultério, enquanto o Naturalismo não apenas vale-se do adultério, mas vai além, aborda taras sexuais, traições aviltantes e degradantes. Aluísio, no entanto, além disso, consegue mostrar a sexualidade da Pombinha de maneira até poética, Veja antes da Síntese do enredo um resumo do capítulo em que conta isso e uma transcrição do belo texto.
Em lugar da psicologia realista, o Naturalismo preocupa-se mais com a fisiologia. Quanto à ação, o Naturalismo valoriza mais a exterior do que a interior, aproximando-se, pelo menos nisso, do Romantismo.
Suas descrições, no entanto, revelam uma preferência não pelo que é belo e grandioso ou heroico, mas pelo que é feio, desagradável, repugnante, nauseabundo. Exemplo disso é o destaque para descrições de comida azeda, vômito, odores da transpiração, mau hálito de aguardente ou de fumo.
Capítulo 11
, Pombinha não saiu de casa. Sentia vontade de ficar só. Retirou-se para o fundo do cortiço, quase ao meio-dia. Deitou-se na grama, sob as árvores, e dormiu. Teve um sonho estranho em que se via nua, deitada no colo de uma rosa vermelha.
Esse sonho, com suas imagens poéticas, simbólicas, constitui uma das mais belas passagens deste romance. Não se pode deixar de lê-la. Aluísio vale-se de termos de botânica e de imagens simbólicas para criar erotismo, sensualidade. Várias imagens parecem decorrer de um estudo da simbologia onírica da psicanálise freudiana ou dos arquétipos junguianos, mas não, porque este romance foi publicado em 1890, ao passo que os estudos de Freud e de Jung só apareceram após a primeira década do século XX. Aluísio foi precursor. Vejam o texto todo a que daremos um título e observem bem:
O SONHO DE POMBINHA
Às onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos bambus e das mangueiras. Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma aflição de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufocante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da antevéspera; mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se, pressentindo delicias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de um homem amado, dentro dela balbuciavam desejos, até ai mudos e adormecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a de surpresa e mergulhando-a em fundas concentrações de êxtase. Um inefável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os músculos com uma embriaguez de flores traiçoeiras.
Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão. Na doce tranquilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir distante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja. E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompanhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancólico e sentido, como um coro religioso de penitentes.
O calor tirava do capim um cheiro sensual.
A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpecimento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e pernas abertas.
Adormeceu.
Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa, a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais, até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde largos tinhorões rubros se agitavam lentamente.
E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.
Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de uma só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico.
Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se formando ondulantes camadas sanguíneas, que se agitavam, desprendendo aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se achava deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de uma rosa interminável, em que seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim, bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno.
E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética.
Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas formas de menina.
Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu e agitou-se, e, desdobrandose, abriu-se de par em par em duas asas e principiou a fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso lhe inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as asas, e veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados.
E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu sangue de moça.
E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções, ora fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.
Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o colo. Mas a borboleta fugia.
Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um só instante, e a fechasse num rápido abraço dentro das suas asas ardentes. Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava, fugia logo, irrequieta, desvairada de volúpia.
– Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um instante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!
E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada vez que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele contato com a luz.
– Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!
A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob aquele eflúvio luminoso e fecundante.
Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada, levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das entranhas, em uma onda vermelha e quente.
A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.
Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa. No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia de alvoroço pelo número 15. E aí, sem uma palavra, ergueu as saias do vestido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas.
–- Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo da alma.
A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e enrubescida.
As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
***
SÍNTESE DO ENREDO
Para resumir a história, podemos considerar como espinha dorsal da mesma a figura de João Romão, que, através de todo tipo de privação e de exploração, consegue construir o cortiço. Muito colaborou, sem vontade própria, a escrava Bertoleza, que lhe entregou suas economias, com as quais pretendia comprar sua própria liberdade.
Certo dia, um incêndio destrói o cortiço, mas João Romão sai lucrando, pois além de receber indenização do seguro, aproveitou-se da confusão para invadir a casa do velho Libório e surrupiar o dinheiro que o maníaco tinha guardado em garrafas.
João Romão constrói, então, um grande cortiço a que denomina Estalagem São Romão. Além das casas, aluga também as tinas para lavagem de roupa, pois há água em abundância. Enriquecido, para conseguir status na sociedade carioca, pede em casamento a filha do Miranda do sobrado. O intermediário comunica que Miranda aceita, mas D. Estela, sua mulher, quer saber como fica a situação da negra que com ele vive.
João Romão promete livrar-se da negra. Bertoleza que tudo ouvia, entra esbravejando e diz que não vai ser tão fácil assim. João Romão consegue livrar-se dela, denunciando-a aos seus donos. Quando a polícia chega para prendê-la, ela se mata. Logo em seguida, chega uma comissão de abolicionistas e entrega a João Romão o título de sócio benemérito.
[1]Pacheco, João - A Literatura Brasileira, vol. III - O Realismo , SP, MCMLXXI, Ed. Cultrix, p.134.
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