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A FRÁGIL VIDA DE TODOS NÓS

  • Foto do escritor: Jornal Poiésis
    Jornal Poiésis
  • 20 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura


Camilo Mota


A duração da pandemia da covid-19 mantém a humanidade diante de um de seus maiores desafios: compreender o sentido da vida e conviver com a iminência da morte. Nos últimos meses, temos assistido ao efeito trágico de um fenômeno natural. Cada um de nós perdeu alguém, seja parente, amigo, um colega distante, um famoso a quem admirávamos, e tantos e mais tantos desconhecidos, trazendo-nos a percepção de que fazemos parte de um todo a que chamamos de humanidade. A tragédia, no sentido clássico, é essa dimensão do inexorável, daquilo que está ali a nos lembrar que estaremos sempre na iminência de sermos o que somos, e nada mais.


Sigmund Freud, num texto de 19151, afirma que a vida “empobrece, perde algo do interesse, quando a mais elevada aposta no jogo da vida, isto é, ela mesma, não pode ser arriscada”. A convivência diária com o isolamento social retirou esse prazer de muitas pessoas. Aventurar-se numa simples ida ao supermercado tornou-se o risco de enfrentar o que não se gostaria jamais de reconhecer: somos frágeis e a iminência da morte nos retira o prazer de fruir da própria vida. E é neste ponto que gostaria de pautar o tema desse breve artigo. Afinal, parece substancial compreendermos o que perdemos quando deixamos de nos encantar pela transitoriedade da vida.


Temos aqui dois pontos a considerar: a percepção da fragilidade humana diante da natureza, tema que Freud descreve com bastante perspicácia em “O mal estar na civilização”; o reconhecimento dessa fragilidade como força impulsora da vida. Esses dois vetores podem, assim, nos conduzir a algumas reflexões positivas sobre o atual momento civilizatório.


Refletindo sobre esse mal-estar no mundo contemporâneo, Joel Birman2 nos esclarece: “Seria porque os homens são frágeis, finitos e mortais que eles precisam criar todos os artifícios para o tamponamento daquelas marcas que se materializam com os ouropéis da vanidade, da suposta autossuficiência e da onipotência”. Nesse primeiro vetor, então, vemos como a fragilidade humana se estabelece muito cedo, ainda na infância, quando percebemos a dependência que temos do seio materno, o medo do abandono, do desamparo. E passamos a vida a construir estratégias de sobrevivência, que nos levam a desconstruir o fantasma dessa transitoriedade que apresenta um jogo no qual prazer e dor convivem diariamente. O vazio criado pelas tantas ameaças à própria vida ao longo da existência vai sendo preenchido pelos afetos que criamos e pelas ligações estabelecidas com o mundo, de maneira que nos sintamos seguros. Essa sensação de segurança se esvai quando somos confrontados com a tragicidade da existência: nossos afetos e desejos estão sempre se deslocando entre objetos que estão sujeitos à mesma ordem que a nossa. Ou seja, quando alguém morre, estamos nos confrontando com a nossa própria morte. Estratégias de insensibilização podem ser criadas, como temos assistido diariamente em redes sociais e mesmo em nosso dia a dia: negacionismo, humor, expressão violenta, maior busca por aspectos espirituais... atitudes que contribuem para o enfrentamento do destino. Cada pessoa encontra o melhor modo que conhece para lidar com seu próprio desejo e para minimizar o desprazer sentido. O isolamento social, motivado pela pandemia, ampliou essa percepção de fragilidade e levou cada pessoa a deslocar seus afetos ou mesmo retrair o próprio desejo, causando assim um enorme mal-estar, que pode ser sentido no crescente número de casos de depressão e ansiedade ocorridos nos últimos meses.


No entanto, há um segundo vetor a ser considerado, e este é o que reverte positivamente o

quadro vivenciado diante do processo pandêmico. Freud, em 1916, nos oferece um vislumbre interessante sobre isso ao escrever sobre a transitoriedade3. Diz ele: “Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade. (...) Vemos desaparecer a beleza do rosto e do corpo humanos no curso de nossa vida, mas essa brevidade lhes acrescenta mais um encanto”. Uma maior compreensão do próprio desejo pode posicionar o sujeito numa melhor fruição de sua existência. A libido, fragilizada diante da impotência de agir em seu investimento sobre as coisas, pode ser percebida e ressignificada caso saibamos para onde estamos indo, ou seja, se estamos realmente imbuídos do propósito de saber qual o sentido da vida. Se este sentido está fixado na fruição desenfreada dos afetos, se está apegado a coisas e pessoas como elementos de autopreservação, certamente estaremos cada vez mais frágeis, porque a todo instante estamos diante de uma supressão do desejo, numa suspensão incômoda do gozo. E o que todos querem é apenas gozar (fazer compras, estar fora de casa para não conviver consigo mesmo e seu pequeno cotidiano, ir para festas e baladas, celebrar em cultos de adoração...).


O que a pandemia pode nos ensinar é que cada coisa vivenciada é transitória, frágil como nós mesmos somos frágeis. Nesse sentido, perceber a vulnerabilidade da vida é ampliar a possibilidade de gozo, não como algo que esteja o tempo todo a nossa disposição (pois que o próprio gozo também é transitório), mas que possa ser usufruído plenamente pela raridade que ele mesmo representa. Por isso, é tão importante, nesse momento atual, refletir sobre o destino de nossos desejos, de modo a podermos retomar o ritmo da vida com menos pressa, com menos correria, para poder experenciar, experimentar, sentir o sabor das coisas e das pessoas como único. A vida é breve. Então, cada momento vivido, é importante. Mesmo estando sozinho durante o isolamento. Freud encerra seu breve artigo sobre a transitoriedade afirmando: “Superado o luto, percebemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes”.


A guerra atual é contra um vírus, mas sobretudo contra a impertinência dos homens, que ainda lutam para negar sua fragilidade, ao invés de acolher o transitório e aproveitar a vida naquilo que ela tem de melhor, mesmo quando aparentemente as coisas parecem não esta indo bem.


REFERÊNCIAS

1. FREUD, Sigmund. Nossa atitude perante a morte. In: Introdução ao narcisismo, ensaios

de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12. Tradução

Paulo César de Souza. Companhia das Letras, edição digital.

2. BIRMAN, Joel. Mal-estar na atualidade: a psicanálise e as novas formas de

subjetivação. 13a ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2019.

3. FREUD, Sigmund. A transitoriedade. In: Introdução ao narcisismo, ensaios de

metapsicologia e outros textos (1914-1916). Obras completas, volume 12. Tradução

Paulo César de Souza. Companhia das Letras, edição digital.

4. FREUD, Sigmund. Id ibdem.


Camilo Mota é psicanalista e terapeuta holístico.

www.camilomota.com.br

Facebook: @camilomotapsicanalista

Instagram: @camilomota_psicanalista

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